domingo, 23 de novembro de 2014

Manoel de Barros

Manoel de Barros
O poeta Manoel de Barros faleceu em 13 de novembro de 2014, aos 97 anos de idade. Nasceu em Cuiabá e passou sua infância em Corumbá, em meio à natureza exuberante do Pantanal. Nos últimos anos, residia em Campo Grande com a esposa. 
O que mais me atrai nos poemas de Manoel de Barros é sua paixão pela natureza; tudo despertava nele encantamento: os pássaros, as aves, os rios. Dizia ele: “Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso.”
Em homenagem ao poeta, transcrevo abaixo um de seus poemas: Gratitude das Aves e dos Lírios.

                               Gratitude das Aves e dos Lírios


Sempre que a gratuidade pousa em minhas palavras,
elas são abençoadas por pássaros e por lírios.
Os pássaros conduzem o homem para o azul,
para as águas, para as árvores e para o amor.

Ser escolhido por um pássaro para ser a árvore dele:
eis o orgulho de uma árvore.
Ser ferido de silêncio pelo voo dos pássaros:
eis o esplendor do silêncio.
Ser escolhido pelas garças para ser o rio delas:
eis a vaidade dos rios.
Por outro lado, o orgulho dos brejos é o de serem escolhidos
por lírios, que lhes entregarão a inocência.

Sei, entrementes, que a ciência faz cópia de ovelhas,
que a ciência produz seres em vidros.
Louvo a ciência por seus benefícios à humanidade,
mas  não concordo que a ciência não se aplique em produzir
Encantamentos.

Por quê não medir, por exemplo, a extensão do exílio das cigarras?
Por quê não medir a relação de amor que os pássaros têm com as brisas da manhã?
Por quê não medir a amorosa penetração das chuvas no dentro da terra?

Eu queria aprofundar o que não sei, como fazem os cientistas,
 mas só na área dos encantamentos.
Queria que um ferrolho fechasse o meu silêncio, para eu sentir melhor as coisas incriadas.
Queria poder ouvir as conchas, quando elas se desprendem da existência.
Queria descobrir por quê os pássaros escolhem a amplidão para viver,
enquanto os homens escolhem ficar encerrados em suas paredes.

Sou leso em tratagem com máquina; mas inventei, para meu gasto,
um Aferidor de Encantamentos.
Queria medir os encantos que existem nas coisas sem importância.
Eu descobri que o sol, o mar, as árvores e os arrebois são mais enriquecidos pelos pássaros do que pelos homens.

Eu descobri, com o meu Aferidor de Encantamentos, que as violetas e as rosas e as acácias são mais filiadas dos pássaros do que os cientistas.
Porque eu entendo, desde a minha pobre percepção, que o vencedor, no fim das contas, é aquele que atinge o inútil dos pássaros e dos lírios do campo.
Ah, que estas palavras gratuitas possam agora servir de abrigo para todos os pássaros do mundo!



sábado, 15 de novembro de 2014

Por que meditar

Bokar Rinpoche

Bokar Rinpoje é um  sábio budista, nascido no Tibete em 1940. Como tantos outros sábios, em 1959 ele teve que abandonar o Tibete, ocupada então pelos chineses. Em 1980, inicia suas viagens pelo Ocidente, onde instala centros de meditação, sobretudo na França. Bokar é autor de vários livros, dentre os quais se destaca   “Meditação - Conselhos aos Principiantes”. Bokar mostra que o sofrimento e a felicidade não dependem de fatores externos , mas da própria mente. Ele oferece maneiras de evitar o sofrimento e desenvolver felicidade e paz.

                 Meditação - Conselho aos principiantes

Os homens são afligidos por sofrimentos, angústias e medos inumeráveis e são incapazes de evitá-los. A meditação tem por função eliminar esses sofrimentos e essas angústias.

Pensamos, geralmente, que felicidade e sofrimento surgem de circunstâncias exteriores. O ponto de vista budista considera, ao contrário, que felicidade e sofrimento não dependem fundamentalmente das circunstâncias exteriores, mas da própria mente. Uma atitude de mente positiva engendra a felicidade, uma atitude negativa produz o sofrimento.

Como compreender esse engano que nos faz procurar fora aquilo que podemos encontrar dentro? Uma pessoa de rosto limpo e nítido, ao se olhar em um espelho vê um rosto limpo e nítido. Aquele cujo rosto é sujo e maculado de lama vê no espelho um rosto sujo e maculado. Em verdade, o reflexo não tem existência; só o rosto existe. Esquecendo o rosto, tomamos seu reflexo por real. A natureza positiva ou negativa de nossa mente se reflete nas aparências exteriores que nossa própria mente nos envia. A manifestação exterior é uma resposta à qualidade de nosso mundo interior.

A felicidade que desejamos não virá da reestruturação do mundo que nos cerca, mas da reforma de nosso mundo interior. O indesejável sofrimento só cessará na medida em que não embotarmos nossa mente com todos os tipos de negatividades. Enquanto não reconhecermos que felicidade e sofrimento têm sua origem em nossa própria mente, permanecemos impotentes para estabelecer um estado de felicidade autêntica, impotentes para evitar as contínuas ressurgências do sofrimento. Qualquer que seja nossa esperança, ela é sempre decepcionada.

 Se, ao descobrirmos no espelho a sujidade de nosso rosto, decidíssemos lavar o espelho, mesmo que esfregássemos fortemente durante anos com sabão e água em abundância, nada aconteceria; nem a mínima sujeira, nem a mínima mancha desapareceria do reflexo. Por falta de orientarmos nossos esforços para o objeto justo, eles permanecem perfeitamente vãos. Eis por que o budismo e a meditação têm por primordial compreender que felicidade e sofrimento não dependem fundamentalmente do mundo exterior, mas de nossa própria mente. Na falta dessa compreensão, nunca nos voltaríamos para o interior e continuaríamos a investir nossa energia e nossas esperanças numa vã busca exterior. Uma vez adquirida essa compreensão, podemos lavar nosso rosto: o reflexo surgirá limpo no espelho.

   É preferível, para os principiantes, limitar-se a curtas sessões de dez ou quinze minutos. Mesmo que a meditação seja boa, devemos parar. Depois, se dispusermos de tempo necessário, faremos uma segunda sessão curta, após uma pausa. Melhor é proceder por uma sucessão de curtas sessões, do que engajar-se numa longa sessão que, mesmo boa no início, corre o risco de resvalar para a dificuldade e cansar o meditador.

   Os principiantes, sem saber com exatidão o que é a meditação, criam a expectativa de uma calma perfeita, totalmente livre dos pensamentos. Temem sua vinda e, quando estes surgem, desolam-se por sua incapacidade de meditar. Temer os pensamentos, irritar-se ou inquietar-se com seu aparecimento, crer que a falta de pensamentos é uma boa coisa em si, são erros que conduzem a um estado de frustração e culpa inúteis. A mente de um não-meditador, de um principiante e de um meditador confirmado, é atravessada por pensamentos. Mas, a maneira de abordá-los varia de modo considerável de um para o outro.

Alguém que não pratica a meditação é, em sua relação com os pensamentos, semelhante a um cego, o rosto voltado para uma estrada longínqua. O cego é incapaz de ver se automóveis passam ou não na estrada. Da mesma forma, a pessoa comum, embora experimentando um sentimento vago de desconforto e mal estar interiores, não está consciente da torrente de pensamentos que, no entanto, escoa sem interrupção.

Ao começarmos a meditar, descobrimos os olhos para ver, mas gostaríamos que não passasse nenhum automóvel na estrada. Vem um primeiro automóvel, nossa atenção decepciona-se. Um segundo, nova decepção. Um terceiro,  irritamo-nos, etc. A esperança ingênua de uma estrada vazia é incessantemente enganada. Estamos ao mesmo tempo conscientes e infelizes com a sucessão dos veículos. Cada automóvel que passa é uma nova dificuldade. Revoltamo-nos contra um estado de coisas inevitável. Quando encaramos a meditação como um espaço desprovido de pensamentos, cada pensamento que se apresenta contradiz com evidência esse esquema preconcebido; estamos em situação de fracasso quase permanente.

Quando, ao contrário, compreendemos bem em que consiste a meditação, vemos desfilar os automóveis,  mas sem revolta nem recusa, sem ter decidido que a estrada deveria estar vazia. Não esperamos a ausência de veículos, assim como não nos apavoramos com sua presença. Os automóveis passam e os deixamos passar; eles não são nem nocivos, nem benéficos. Se os pensamentos se elevam, deixamos que passem  naturalmente, sem nos ligarmos a eles nem condená-los.  Uma abordagem sã dos pensamentos condiciona uma boa meditação. As pessoas que compreendem mal a meditação creem que todos os pensamentos devem cessar. Não podemos, de fato, estabelecer-nos num estado sem pensamentos. O fruto da meditação não é a ausência de pensamentos, mas o fato de que os pensamentos cessam de ser nocivos para nós. De inimigos, os pensamentos tornam-se amigos.  

Meditar alguns dias, alguns meses, até mesmo um ano, depois abandonar, também não dará frutos. Um enfermo deve tomar seus medicamentos até a cura completa. Se ele para o tratamento, mesmo que este dure meses ou anos, o mal triunfará. Devemos prosseguir nossa meditação, até que tenhamos alcançado uma realização efetiva e estável. Regularidade e perseverança são duas condições necessárias para uma meditação proveitosa.

domingo, 2 de novembro de 2014

Uma lenda hindu



Js.
Uma antiga lenda hindu conta que houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram de tal maneira de sua divindade que Brahma, o mestre dos deuses, resolveu retirar-lhes o poder divino e de escondê-lo em um lugar impossível de alcançá-lo. Mas o grande problema era encontrar um lugar seguro para esse poder divino. 

Os deuses menores convocados para uma reunião, a fim de resolver o problema, propuseram o seguinte: “Enterremos a divindade nas profundezas da terra”. Mas Brahma respondeu: “Não, isto não é suficiente, pois o homem cavará a terra e a encontrará”. Então, os deuses replicaram: “Nesse caso, lancemos a divindade no mais profundo dos oceanos”. Mas Brahma não aceitou a nova proposta dizendo que, mais cedo ou mais tarde, o homem explorará as profundezas de todos os oceanos e certamente que um dia a encontrarão e tomarão posse do tesouro.  Então, os deuses menores concluíram: Sendo assim, não sabemos onde escondê-la, já que parece não existir na terra ou no mar um lugar que o homem não possa um dia descobrir. 

Então Brahma disse: "Eis o que faremos da divindade do homem; nós a esconderemos no mais profundo dele mesmo, em seu coração, pois este é o lugar que ele jamais pensará em encontrá-la." 

A lenda diz que, desde esse tempo, o homem percorreu a terra, explorou a lua, escalou as mais altas montanhas, mergulhou nas profundezas dos oceanos, penetrou na terra, sempre à procura de alguma coisa que se encontra nele.

Esta lenda contém lições de sabedoria. Em primeiro lugar, ela nos mostra como sempre foi difícil para o ser humano se voltar para dentro de si mesmo. Somos seduzidos desde cedo pelo progresso da tecnologia e nossa vida é quase toda dedicada ao fazer. Vivemos na periferia da vida e poucos são aqueles que descobrem a sua mais profunda essência: o Ser, que é a nossa verdadeira natureza.

O maior obstáculo para vivenciar essa realidade é a identificação com a mente. Os pensamentos nos tornam pessoas sempre ausentes, de modo que não encontramos a área de serenidade interior, que é inseparável do Ser.

Mas o “paraíso perdido” pode ser recuperado e isto é o que tem acontecido com milhares de pessoas, tanto no passado como nos tempos atuais.  

No século IV, Santo Agostinho conhecia esta verdade: “Os homens seguem-se maravilhados com as grandes alturas das montanhas, com as gigantescas ondas do mar, com as amplas corredeiras dos rios, os vastos limites dos oceanos, as trajetórias das estrelas, e passam por si próprios sem maravilhar-se.”
Essa maravilha de que fala Santo Agostinho é a centelha divina presente em cada ser humano, o tesouro escondido que precisa ser descoberto.

Ramana Maharshi, um grande sábio indiano, aconselhava às pessoas que anseiam por descobrir essa Realidade interior a fazerem a si mesmas, nos momentos de quietude, a seguinte pergunta: “Quem sou eu?”. Não vale a resposta que a mente possa lhe dar. Você não é sua história de vida, seu nome, sua profissão, suas posses. Tudo isso são agregados acumulados pelo tempo. A revelação deve acontecer quando a pessoa está num estado de tranquilidade e receptivo para receber a resposta que vem do seu próprio interior. Um requisito básico para essa experiência é a humildade, que nos mantém pacientes e persistentes. Devemos esperar humildemente por esta revelação do Infinito, que está dentro de cada um de nós.

Neste sentido é que devem ser compreendidas as palavras de Jesus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor dos céus e da terra, pois escondeste estas coisas dos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.”

Quando temos a sorte de descobrir a “boa nova” da presença divina em nós, percebemos quão alienados da verdade está o nosso mundo e compreendemos, então, a veracidade da lenda:  “Eis o que faremos da divindade do homem; nós a esconderemos no mais profundo dele mesmo, em seu coração, pois este é o lugar que ele jamais pensará em encontrá-la.”