sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Memórias, Sonhos, Reflexões

Carl Gustav Jung
 1875-1961
   Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade. 
   
  A fim de descrever esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como um problema científico. O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito. 
 Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente do que o faz a ciência, que trabalha com noções médias, genéricas demais para poder dar uma ideia justa da riqueza múltipla e subjetiva de uma vida individual. 
 
   Assim, pois, comecei agora, aos oitenta e três anos, a contar o mito da minha vida. 
Sou um homem. Mas o que isto significa? Como todos os outros entes, também fui separado da divindade infinita. 
   
   A vida sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma; a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura um só verão, depois fenece. Mas, nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudança. O que vemos é a floração – e ela desaparece. Mas o rizoma persiste.
 
    Em última análise, só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida através dos quais o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero. Por isso, falo principalmente das experiências interiores. Diante dos acontecimentos interiores, as outras lembranças empalidecem: viagens, relações humanas, ambiente. A lembrança dos fatos exteriores de minha vida, em sua maior parte, esfumou-se em meu espírito ou então desapareceu. Mas, os encontros com a outra realidade, o embate com o inconsciente, se impregnaram de maneira indelével em minha memória. Nessa região sempre houve abundância e riqueza; o restante ocupava o segundo plano. 
 
   No início de 1944, fraturei um pé e logo depois tive um enfarte cardíaco. Durante a inconsciência, tive delírios e visões. As imagens eram tão violentas que eu próprio concluí que estava prestes a morrer.  Eu tinha atingido o limite extremo e não sei se era sonho ou êxtase. Seja o que for, aconteceram coisas muito estranhas. Parecia-me estar muito alto no espaço cósmico. Enquanto pensava nessas coisas, um fato atraiu minha atenção: de baixo da Europa, ergueu-se uma imagem: era meia médico, ou melhor sua imagem, circundada por uma corrente de ouro ou por uma coroa de louros dourada. Pensei imediatamente: “Ora veja! é o médico que me assistiu!" Quando ele chegou diante de mim, pairando como uma imagem nascida das profundezas, produziu-se entre nós uma silenciosa transmissão de pensamentos. Realmente, meu médico fora delegado pela Terra para trazer-me uma mensagem: protestavam contra a minha partida. Não tinha o direito de deixar a Terra e devia retornar. No momento em que percebi essa mensagem, a visão desapareceu. 
 
   Quando estava no espaço, não tinha peso e nada podia me atrair. E agora, tudo terminado! Sentia resistência contra meu médico, porque ele me reconduzira à vida. Por outro lado, inquietava-me por ele: “Por Deus, ele está ameaçado! Não me apareceu sob a forma primeira? Quando alguém chega a essa forma é que está para morrer e desde então pertence à sociedade de “seus verdadeiros semelhantes”. Era minha firme convicção de que ele estava em perigo, porque eu o vira em sua forma original. E, com efeito, fui seu último paciente. Em 4 de abril de 1944 – sei ainda exatamente a data – fui autorizado pela primeira vez a sentar-me à beira da cama e, neste mesmo dia, ele se deitou para não mais levantar. Soube que tivera um acesso de febre e pouco depois morreu de septicemia. 
 
   É impossível ter uma ideia da beleza e da intensidade do sentimento, durante as visões. Foi o que vivi de mais prodigioso. E que contraste o dia! Vivia então atormentado e meus nervos estavam completamente esgotados. Tudo me irritava, tudo era muito material, grosseiro, pesado e espiritualmente limitado; tudo parecia artificialmente diminuído, com uma finalidade desconhecida e, no entanto, parecia ter uma força hipnótica tão decisiva que era como se fosse a própria realidade, e ao mesmo tempo, era claramente discernível sua insignificância. 
   
   Nunca pensei que se pudesse viver uma tal experiência, e que uma beatitude contínua fosse possível. Essas visões e acontecimentos eram perfeitamente reais. Nada havia de artificialmente forçado; pelo contrário, tudo era de extrema objetividade. Teme-se usar a expressão “eterno”; não posso, entretanto, descrever o que vivi, senão como a beatitude de um estado intemporal, no qual presente, passado e futuro são um só. 
 
   Minha doença teve ainda outras repercussões: elas consistiram, poder-se-ia dizer, numa aceitação do ser, num “sim” incondicional ao que é, sem objeções subjetivas, numa aceitação das condições da existência como as vejo e compreendo; aceitação do meu ser como ele é simplesmente. No início da doença sentia que minha atitude anterior tinha sido um erro e que eu próprio era, de qualquer forma, responsável pelo acidente. Mas, quando seguimos o caminho da individuação, quando vivemos nossa vida, é preciso também aceitar o erro, sem o qual a vida não será completa.
 
    Foi só depois da minha doença que compreendi o quanto é importante aceitar o destino. Porque assim há um eu que não recua, quando surge o incompreensível. Um eu que resiste, que suporta a verdade e que está à altura do mundo e do destino. Então uma derrota pode ser ao mesmo tempo uma vitória. Nada nos perturba, nem dentro, nem fora, porque nossa própria continuidade resistiu à torrente da vida e do tempo. Mas isso só acontece se não impedirmos que o destino manifeste suas intenções. 
 
    Está estabelecido que o inconsciente sabe mais que o consciente, mas seu saber é de uma essência particular, de um saber eterno que, com frequência, não tem nenhuma ligação com o “aqui” e o “agora” e não leva absolutamente em conta a linguagem que fala nosso intelecto. Eu poderia imaginar que para algumas almas o estado de existência tridimensional seria mais feliz do que o estado “eterno”. Mas isso dependerá talvez do que elas tenham levado consigo, como soma de perfeição ou de imperfeição de sua existência humana. Pode ser que uma continuação da vida tridimensional não tenha mais nenhum sentido, uma vez que a alma tenha atingido certos degraus de inteligência, que esteja liberta da necessidade de retornar à Terra e que uma compreensão superior suprima o desejo de ver-se reencarnada. Então a alma escaparia ao mundo tridimensional e atingiria o estado a que os budistas chamam de Nirvana. Mas se ainda há um carma que deva ser cumprido, a alma recai no mundo dos desejos e retorna novamente à vida, talvez sabendo mesmo que falta alguma coisa para cumprir.
 
   A diferença entre a maioria dos homens e eu reside no fato de que em mim as “paredes divisórias” são transparentes. É uma particularidade minha. Nos outros, elas são muitas vezes tão espessas, que lhes impedem a visão; eles pensam, por isso, que não há nada do outro lado. Sou capaz de perceber, até certo ponto, os processos que se desenvolvem no segundo plano; isso me dá segurança interior. Quem nada vê não tem segurança, não pode tirar conclusão alguma, ou não confia em suas conclusões. Ignoro o que determinou a minha faculdade de perceber o fluxo da vida. Talvez tenha sido o próprio inconsciente, talvez os meus sonhos precoces, que desde o início marcaram meu caminho. 
 
   Quando criança, sentia-me solitário e o sou ainda hoje, pois sei e devo dizer aos outros coisas que aparentemente não conhecem ou não querem conhecer. A solidão não significa a ausência de pessoas à nossa volta, mas sim o fato de não podermos comunicar-lhes as coisas que julgamos importantes, ou mostrar-lhes o valor de pensamentos que lhes parecem improváveis. Minha solidão começa com a experiência vivida em sonhos precoces e atinge seu ápice na época em que me confrontei com o inconsciente. Quando alguém sabe mais do que os outros, torna-se solitário. Mas a solidão não significa, necessariamente, oposição à comunidade; ninguém sente mais profundamente a comunidade do que o solitário, e esta só floresce quando cada um se lembra de sua própria natureza, sem identificar-se com os outros. 
 
    É importante que tenhamos um segredo e a intuição de algo incognoscível. Esse mistério dá à vida um tom impessoal e “numinoso”. Quem não teve uma experiência desse tipo perdeu algo de importante. O homem deve sentir que vive num mundo misterioso, sob certos aspectos, onde ocorrem coisas inauditas – que permanecem inexplicáveis – e não somente coisas que se desenvolvem nos limites do esperado. O inesperado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa. Para mim, o mundo, desde o início, era infinitamente grande e inabarcável. Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter. Ofendi muitas pessoas; assim que lhes percebia a incompreensão, elas me desinteressavam. Precisava continuar. 
 
   Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Em sua maioria dependeram do destino. Lamento muitas tolices, resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas, não teria chegado à minha meta. 
 
   A idade avançada é uma limitação, um estreitamento. E, no entanto, acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem. Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo.

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